Não é vergonha ter medo; vergonha é deixar que o medo o domine a ponto de impedir que cumpra o que tem o dever de realizar. Um ato de
valor, se é efectuado por quem desconhece o perigo que defronta, poderá ser belo nos seus resultados, mas só demonstra ignorância por parte de quem o pratica.
Tem outro merecimento, se o autor é perfeitamente consciente dos perigos a que se foi sujeitar. Assim, nem sempre a história tem sido justa, colocando no mesmo plano o insensato que o êxito bafeja e o homem de lúcido espírito que se arroja a atos heróicos, pelo cumprimento do dever que traça a si próprio.
Citam-se exemplos de homens ilustres que sentiam bem o medo, mas contra ele lutaram vitoriosamente. É o caso do Marechal Turenne, que tremia antes das batalhas e a quem se atribui a seguinte frase dirigida a si próprio: “Tremes, carcaça; mas mais tremerias se soubesses até onde quero levar-te”.
Ter medo é normalíssimo e fisiológico. A luta pela vida, os instintos de defesa que, sendo animais não deixam de ser humanos, supõem na sua origem esse sentimento do medo. Ele compõe-se de um conjunto de impressões e de sensações de que resultam actos reflexos involuntários.
Todo o trabalho do homem que se preza, consiste em transformar na maior medida possível esses atos reflexos em atos dependentes da vontade, e regular estes para que se afastem das atitudes de bravura e se tornem úteis para a conservação individual sem comprometerem a própria dignidade.
Os vários incidentes da última guerra vieram dar ocasião a que efetuassem estudos interessantes sobre o medo. Até então, apenas se empregava o método de auto observação, método com sérios defeitos, já porque a própria sensação do medo obscurecia a análise íntima do fenómeno na ocasião em que este se produzia, já porque a confissão do que se havia sentido era deformada por aquele sentimento de vergonha a que nos referimos.
Nesta guerra foi possível empregar outros processos de estudo, os que servem comummente em trabalhos de fisiologia experimental, tendo-se verificado a existência de perturbações do funcionamento de vários órgãos, mesmo naquelas pessoas que parecem mais indiferentes, por mais habituadas ou por disposição natural que estejam aos perigos que as ameaçam.
O escritor Lintier, diz o seguinte: “É preciso viver em campanha como em qualquer outra circunstância; é preciso que cada um se acomode a essa nova existência, por precária ou por amarga que seja. Ora, o que mais a perturba, o que a torna intolerável é o medo, o medo que estrangula.
É preciso vencê-lo, e vence-se. De princípio o medo é uma coisa que se não concretiza… sua-se, treme-se…, a imaginação amplifica-o. Não se raciocina: mas com o correr dos dias faz-se a distinção. O fumo é inofensivo. O sibilar do obus serve para prever a sua direcção.
Não se apresenta já o busto sem necessidade; também ninguém se abriga senão quando é necessário. O medo deixa de dominar, é dominado. Tudo está nisto”.
O hábito de ver a morte de frente cria para o soldado a possibilidade de proceder tranquilamente aos serviços que dele se exigem, mesmo sob o perigo dos mais intensos bombardeamentos. Mas, na verdade, terá então desaparecido inteiramente a natural emoção de medo?
Essa emoção, além do fenómeno subjetivo, manifesta-se objectivamente por gestos, atitudes, perturbações do funcionamento de vários órgãos, particularmente da circulação. Para William James essas perturbações vêm imediatamente após a perceção do facto, e é o sentimento que delas temos que constitui a emoção. Mas sejam assim anteriores, sejam consequências da sensação do medo, a verdade é que são constantes.
Um notável cirurgião Francês do século XVI, Ambrósio Paré, tinha já notado que “o movimento das artérias era alterado e perturbado pelas paixões da alma”.
O ritmo do coração, a pressão arterial e o pulso são, pois, dignos de observação nos casos em que se pode prever o aparecimento da sensação do medo, ainda que este se não revele por gestos ou atitudes, e ainda mesmo que passe despercebido ao próprio paciente
O Dr. Pierre Menard, procedendo a estudos desta ordem durante a última guerra, viu que os combatentes da primeira linha têm a tensão arterial permanentemente baixa. Esta eleva-se quando o soldado passa da primeira para a segunda linha e torna-se normal na terceira linha.
Assim, o exame do pulso indica de certo modo a distância a que este soldado está do inimigo no momento em que é observado.
Observou-se também que as perturbações do pulso se tornam mais notáveis por ocasião de intensos bombardeamentos, diminuindo nos períodos mais calmos da guerra. Quando as granadas rebentam com extrema frequência, aquelas perturbações acentuam-se ainda.
Em certos casos, quando a granada rebenta a grande proximidade, há elevação considerável da tensão arterial mínima e abaixamento da tensão máxima, enfim modificações que se encontram em estados patológicos muito graves e que não seriam compatíveis com a vida se fossem persistentes.
Tudo isto nos indica que há um medo consciente e também um medo inconsciente que só por estas perturbações orgânicas se manifesta. Diminuir o primeiro até quase o abolir é o resultado do hábito.
Mas a coragem consiste, na verdade, não em ter medo, mas sim em senti-lo e dominá-lo, não desertando do posto em que se está colocado e nele cumprindo inteiramente o que é dever cumprir.
Prof. Ferreira de Mira